SAIBA MAIS SOBRE A LONGA TRADIÇÃO DO USO DE TURBANTES NO MARROCOS

Neste último ano tive a oportunidade de conhecer lugares que nem imaginava que poderia chegar. Aproveitando o tempo de estudos, fora de casa, eu também aproveitei para conhecer lugares que pudessem me oferecer algo a mais sobre meus interesses não apenas acadêmicos (na universidade), mas também sobre minha construção como mulher negra.

Das viagens que fiz uma me marcou especialmente: passei 7 dias no Marrocos. Estive em Marrakesh e Essaouira.


Amanhecer no Deserto do Saara

O Marrocos é um país que fica no continente africano, no extremo noroeste, fazendo fronteira ao norte com o Mar Mediterrâneo e com o estreito de Gibraltar, por onde faz fronteira marítima com a Espanha.  A leste, o país faz fronteira com a Argélia, e a sul com a Mauritânia, através do Saara Ocidental. Mesmo sabendo que eu não estava na África Negra, lugar de onde foram levados os negros para o Brasil, e de onde provavelmente vieram meus ancestrais, eu tive uma emoção que parecia sem explicação ao botar os pés no continente africano. Eu disse que "parecia" não ter explicação porque na minha cabeça também havia construída a imagem do norte do Continente Africano vinculada a um povo branco e europeizado. Algo que lembre os filmes americanos, como Cleópatra vivida interpretada pela Elizabeth Taylor. Inclusive algumas cenas do filme, de 1968, foram filmadas no Marrocos. Mas, logo nas primeiras horas percebi que a gente precisa desconstruir a ideia da África Setentrional (Marrocos, Argélia, Tunísia, Egito, Saara Ocidental, Sudão, Sudão do Sul) como um lugar branco. Os avanços científicos e históricos conquistados pelo povo desta região são tão importantes para a humanidade, que o mundo eurocêntrico nos leva a desvincular o continente africano de tamanho progresso. E vincular este continente tão rico à pobreza, miséria e falta de civilidade. Tudo na tentativa de justificar a intervenção branca como potência civilizatória.



Cenário de muitos filmes, inclusive Cleópatra (1968)

Mas, em pouco tempo eu senti que estava sim na África! Muitas similaridades com o Brasil, especialmente o resultado da política de colonização e destruição que os países europeus promoveram. Foram pilhagens sem fim, o uso de povos e países inteiros como moeda de troca em pleno século XX. Inclusive no Marrocos, hoje um dos idiomas oficiais é o francês, assim como em outros países colonizados, o idioma oficial é o idioma do colonizador. As consequências mais visíveis disso são a destruição não só física, mas também na alma de muitas pessoas com que estive. Entretanto, nossas semelhanças positivas são tantas e tão profundas que me emocionaram: um povo extremamente acolhedor, alegre e que soube preservar suas tradições culturais mesmo com tantos ataques. O chá verde com hortelã servido no mesmo copo para todos os convidados é imperdível.

O guia que nos acompanhou, Mostafa Saara, (foto ao lado), grande apaixonado por seu país e guia desde os 16 anos, me ajudou a desmistificar centenas de coisas sobre o Islâmismo (maior religião do continente africano atualmente). Mais uma impressão que o ocidente tenta nos passar totalmente equivocada e cheia de segundas intenções. Uma religião, que tem suas especificidades, como todas as outras e é respeitada por seus seguidores. As mesquitas, em Marrakesh são proibidas aos turistas. Mas, nos horários de oração vemos os homens, se recolhendo para ir orar, respeitosamente. 

Obviamente, o que mais me encantou em Marrakesh foi a Medina! Eu não perdi a oportunidade renovar o estoque da Central das Divas. Percorri a Medina inteira em busca de tecidos, bijouterias e histórias! E trouxe muuuita coisa. Que em pouco tempo estará disponível para vocês!
Muitos acessórios chegando à Central das Divas

Achei coisas lindas, únicas, feitas com pedras que são encontradas apenas no Marrocos. O artesanato, muitas vezes, é feito ali na sua frente. Na mesma hora a gente se pergunta: onde as mulheres, que vestem burcas, usam essas jóias tão lindas? Soube que é permitido que elas usem acessórios em festas.

Diante de tanta coisa linda, tive que aprender outra coisa: a lei da pechincha! É algo cultural. Eles dão o preço mais alto e começa o jogo. Compramos coisas com até 70% do preço inicial. Outra característica que me fez sentir em casa: muitas cores e alegria! A Medina é um lugar divertido e bonito de se ver... Com uma diversidade de estampas, texturas e cheiros. Mas, não se engane... é lotado! Tem que ter paciência e muita boa vontade para andar muitos quilômetros naquele calor. É gente do mundo todo procurando coisa boa, autêntica e barata!


Além disso,  quem me lê, sabe que a minha paixão é o turbante, além de renovar o estoque da Central das Divas (ou seja, muita novidade chegando em breve) eu descobri histórias fantásticas sobre os turbantes no Marrocos. Em cada região, há uma tradição diferente sobre o uso do turbante. Ele não tem valor religioso, como em outras regiões do continente africano, mas é muito importante culturalmente e é usado como proteção contra o sol ou estético. É um acessório que tem seu uso preservado, especialmente pelos berbéres (primeiro povo a povoar o Marrocos) por cerca de 3000 mil anos! Pesquisei e conversei com os marroquinos sobre os turbantes e os principais detalhes que consegui descobri são:

  • Os berbéres (mais ao norte do país) usam turbantes curtos (até 2 metros) e amarelos.
  • No Anti -Atlas, também conhecido como Pequeno Atlas - que é uma cordilheira montanhosa no sudoeste do Marrocos - usa-se turbante preto mesmo no calor. O tamanho médio é de 6 metros. Oh, qual seria minha alegria conseguir um turbante de 6 metros!
  • Na região Daraa e Tafilalti, usa-se turbante colorido e o tamanho é entre 6 e 22 metros. Se ficaria feliz com um tecido de 6 metros, imagina então um com 22 metros Não tive sorte desta vez...
  • No deserto do Saara, o tamanho é no máximo de 6 metros, pode-se usar apenas branco, cinza ou preto.
  • Nas cidades médias, centros, especialmente por causa dos turistas, as pessoas mais jovens têm vergonha de usar. O uso é restrito à pessoas mais idosas.
 Outra curiosidade super interessante é a forma como os tecidos são coloridos. Eles são pintados artesanalmente com plantas da região: a alfafa dá a cor verde, a páprica dá o vermelho e o açafrão colore os tecidos amarelos. Para fixar as cores naturais, são usados vinagre e limão, depois se mantém o tecido por 3 dias no sol.
Depois de descobrir isso tudo, eu não poderia deixar escapar a oportunidade de ser turbantada por um marroquino. E fui! Estávamos em uma fábrica de tapetes, rumo ao deserto do Saara e o Mostafa me turbantou. O vídeo está aqui embaixo. A amarração não é fácil e é especifica para quem precisa proteger o rosto, do sol, do calor, do vento. Aprendi algumas outras típicas do Marrocos e em breve postarei no nosso canal no YouTube.


Aprender de perto coisas tão importantes pra mim e para o povo negro me fez pensar ainda mais em como desconhecemos o outro lado da história. O lado da história de um povo que foi atacado, vilipendiado, mas manteve sua alegria, força de trabalho e criação. Mais do que isso, andar nas ruas e ser confundida como uma africana, pra mim, foi um orgulho. Em nenhum lugar me diziam como brasileira. Tive orgulho, me senti pertencendo. Me fez pensar no quanto estamos separados, mas no quanto ainda temos em comum. 

Mesmo com tantos ataques estamos de pé e precisamos nos manter assim. Descobrindo as histórias de nossa ancestralidade por nós mesmos e fazendo com que elas cheguem às novas gerações de uma forma com que elas possam sentir orgulho desde cedo de suas origens!


Eu, devidamente turbantada!




        


RASPEI O CABELO! E AGORA!?

Raspei a cabeça, sim! 
Minha decisão não foi repentina. Na verdade, foi um processo que demorou cerca de 15 anos para acontecer. Na minha adolescência, eu olhava para mulheres brancas e dizia: se meu cabelo fosse como o seu, eu raspava.

Quando apareci de visual novo ( raspei em desde janeiro de 2015), um monte de gente veio me perguntar o motivo. Sim, as pessoas ainda te questionam sobre decisões exclusivamente pessoais. Mas, como entendo que a nossa aparência física, a nossa estética, e os padrões estéticos não são apenas questão de gosto, são também o resultado de nossa relação com o mundo e do mundo com a gente, eu resolvi que o primeiro post do tão demorado Blog da Central das Divas tinha que ser sobre minha decisão de raspar a cabeça. 


As perguntas que me fizeram sobre meu novo visual, em geral não foram invasivas, mas elas refletem um pouco da relação que se faz entre feminilidade e o modo como você usa seu cabelo.

Vejam algumas das respostas que dei e tirem suas próprias conclusões: “eu não tive corte químico, nada deu errado nos meus alisamentos, afinal, eu não aliso mais”; “eu não fiz big chop por causa da minha transição capilar (processo que  eu já havia passado, e demorou alguns anos, mas é assunto para outro post); “eu não deitei para o santo, nem fiz obrigação na minha religião (ainda... porque não vejo a hora!); “eu não precisei de coragem, foi até fácil”; “eu não perguntei sua opinião” (esta resposta foi para o indivíduo que veio me dizer: “EU NÃO ACREDITO QUE VOCÊ FEZ ISSO”)Ou seja, em geral as pessoas imaginavam que alguma força maior tinha me levado a raspar a cabeça. Como alguém tão feminina como eu poderia continuar sendo feminina com o cabelo raspado? Mais do que isso: como uma mulher negra, que vive em função da sua relação de amor e ódio com seu cabelo pode acordar um dia e raspar a cabeça sem ter sido forçada a isso?

Na verdade, minha decisão de raspar foi por um motivo maior sim: um amor que se consolidou nos últimos anos... O amor a mim mesma. Do jeitinho que eu sou. Meu processo de enegrecimento me levou a me olhar sucessivamente no espelho e ter certeza que minha boca carnuda é linda, que meus olhos castanhos dizem coisas lindas, que o formato do meu rosto combina com minha pele, meu nariz tem um formato que fica mais bonito quando eu sorrio, minha testa grande dá uma expressão especial ao meu perfil, que meu cabelo é meu e posso fazer com ele o que quiser! Percebi que eu não precisava mais de cachos para emoldurarem meu rosto, ou esconderem meus traços de africana da diáspora. Na verdade, posso ter moldura ou não, por que na verdade o que vejo no espelho me agrada e muito! Este foi o grande motivo por trás da minha decisão de raspar a cabeça. A profundidade com que minha auto-estima estava se expressando dia após dia.

Cortar o cabelo não foi difícil. Difícil foi mudar os padrões de beleza que estavam construídos e impregnados em mim. Padrões que fazem com que passemos uma vida tentando ser diferentes do que somos. Padrões que fazem mulheres negras se olharem no espelho e verem suas características como algo feio, algo a ser transformado ou escondido. E ainda tem a sessão de tortura: cabelo crespo é ruim de crescer, se cortar ele pode crescer em um formato inesperado, negra de cabelo curto fica masculinizada. TUDO MENTIRA! E o pior: não conseguimos nem perceber o quanto isso nos destrói. Precisamos primeiro perceber que nossos olhos são treinados para encontrar a beleza apenas em algumas formas e cores, hegemônicas, padronizadas.  Esse é o primeiro passo para a gente desconstruir estes padrões que nos perseguem e destroem. Assim, finalmente poderemos treinar nossos olhos para ver e gostar do que somos e de onde viemos.
Logo depois do corte e minha carinha de feliz com as cabeleireiras
E em janeiro de 2015, me sentindo plena e bela como eu sou, acordei, entrei em um salão e disse: corta! Máquina 2, por favor!

Difícil foi a cabeleireira ter coragem! Gravei um vídeo na hora e ela me perguntou sucessivas vezes se eu teria coragem mesmo. Passou máquina 4, achando que eu não havia percebido e eu disse: corta mais!

Eu amei o resultado. Passados 5 meses, não estou alucinada para que meu cabelo cresça, esperando os cachinhos se formarem a qualquer custo. Na verdade, eu já comprei minha própria máquina e quando quero vou lá e raspo a cabeça novamente. Ou faço uma coloração, ou coloco mini flores. Ou me turbanto. Ou simplesmente passo minutos me admirando, vendo o quanto de mim está ainda mais negra depois que cortei meu cabelo.

Às garotas e mulheres negras que sentem no seu íntimo que precisam fazer algo por si mesma, que estão cansadas de se olharem e não gostarem do que vêem no espelho, não se machuquem, não tenham pressa... Não há nada de errado com você, nem com o espelho. São centenas de anos de construção de padrões que nos degradam, não é nada fácil desconstruir um padrão estético que é reforçado dia após dia: em novelas, comerciais, no momento da paquera. Mas, temos muita preta linda amando seu cabelinho curto, exibindo ainda mais sua beleza preta e isso já é uma forma de incentivo e valorização.
 Mas, a valorização de nossa estética, da estética do povo negro, não se dará separada da luta por melhores condições de vida para nós. Cada vez que conquistamos espaços, e ocupamos estes espaços assumindo as características de nossa ancestralidade temos mais condições de bater na mesa e dizer NÃO, NÃO ME SUBMETEREI. E hoje, com meus cabelos crespos, muito curtos e pintados num rosa intenso, em cada lugar que vou, eu dou o recado, sem precisar nem abrir a boca: NÃO, NÓS NÃO NOS SUBMETEREMOS AOS SEUS PADRÕES.