DIA DA CONSCIÊNCIA HUMANA PARA QUEM?

Eu havia prometido que não ia fazer postagem especial da consciência negra por dois motivos. O primeiro é que este blog já se dedica a questões raciais o ano todo. O segundo é porque gostaria de ler, ver e ouvir outras pessoas sobre o tema. Mas, depois de passar o dia 20 de novembro vendo tanta gente se manifestar pelo dia da consciência humana, meus dedinhos ficaram coçando... e me trouxeram até aqui.



Não pretendo fazer piada ou ironia sobre quem se dedicou a convocar o dia da "Consciência Humana" porque pretendo me dirigir aos negros e negras que ainda passam o dia 20 de novembro dizendo "SOMOS TODOS IGUAIS".

Preciso dizer que entendo quem afirma SOMOS TODOS IGUAIS. Esta afirmação, especialmente quando vem de pessoas negras, surge da urgência de se afirmar como alguém que tem tanta humanidade quanto um branco ou um asiático. Surge da necessidade de reforçar a ideia de respeito a si, mas ao outro também. Ou seja, ela é legítima. Mas, eu gostaria de dizer que apesar de entender, eu não concordo. Por diversos motivos.

Primeiro é necessário entender a origem da data e os motivos se sua celebração. Dia 20 de novembro é a data de assassinato de um dos poucos líderes da luta negra que a história não apagou: ZUMBI DOS PALMARES. O líder do Quilombo dos Palmares foi assassinado nesse dia pelas tropas coloniais brasileiras, em 1695. Isso já seria motivo para a gente ter um feriado. 

Nunca vi ninguém questionando o Dia de Tiradentes, ou o dia de nascimento de Jesus, por exemplo. 


Mas, há uma outra questão: a instituição deste dia como feriado foi a partir da luta do movimento negro organizado. Reconhecer a importância deste dia é reconhecer a luta de Zumbi e dos movimentos negros no Brasil.
Quando você fala que é necessário dia da consciência humana e não consciência negra, você desconsidera o aspecto histórico e a luta dessas pessoas. Uma luta que foi responsável pela maioria das conquistas que tivemos até aqui. 

Ainda há algo mais profundo na celebração deste dia: ACREDITE, NÃO SOMOS TODOS IGUAIS. Isso é bom. Os diferentes devem ser tratados como diferentes. Temos necessidades diferentes. Mas, para além disso, na nossa sociedade a maioria de negros e negras não são tratados como diferentes, eles são tratados como alguém sem humanidade, ainda hoje somos tratados como não humanos e afirmar que somos todos humanos não vai fazer com que mulheres negras deixem de morrer 54% a mais que as brancas. Afirmar que somos todos iguais não vai fazer com que negros e negras sejam tratados em pé de igualdade nos departamentos de recursos humanos. Afirmar que somos todos iguais não vai fazer com que os jovens negros sejam menos mortos pela polícia no Brasil e também nos Estados Unidos.


A sociedade nos trata como diferentes. Afirmar "SOMOS TODOS IGUAIS" não vai fazer com que a sociedade mude como em uma mágica.

A gente precisa enfiar o dedo na ferida. Desvendar o racismo, reconhecer onde e como ele funciona. Enquanto houver racismo deve haver Dia da Consciência Negra. Precisamos falar sobre as diferenças e mostrar que elas não nos fazem piores. Precisamos sim falar sobre a questão racial para comprometer a sociedade inteira com saídas efetivas para o racismo. Não falar sobre o racismo não vai resolver. Precisamos encará-lo de frente no dia 20 de novembro e no ano inteiro.

GUEST POST: Academicismo negro e a falta de honestidade da hegemonia universitária. - Por Sidélia Silva


Há muito tempo venho namorando alguns escritos de manas amigas para trazer para um post no Blog da Central das Divas. Se gosto de receber amigos na minha casa, porque não amaria receber aqui no Blog?

Para estrear a seção de Guest Post, tenho o maior orgulho de apresentar um texto da amiga querida: Sidélia Silva. Sobre um tema que sempre temos discutido e que aqui ela coloca um pouco pra fora.

Vale a pena cada palavra!
Comentem. Divulguem. Debatam!

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Academicismo negro e a falta de honestidade da hegemonia universitária
Por Sidélia Silva*

“A nossa escrevivência não pode ser lida como histórias para “ninar os da Casa Grande” e sim para incomoda-los em seus sonos injustos.”
(Conceição Evaristo)


Ultimamente, tenho recebido algumas ~acusações~ de ser “academicista” e isso tem vindo de gente branca, classe média e universitária, pessoas que reivindicam se o meu feminismo chega na periferia, como se na periferia não houvesse feminismo, sendo que nunca vi essas pessoas por lá. Vejam vocês! E isso tudo porque faço indicações de textos em conversas amenas. Quando o bixo pega na discussão, eu já tinha indicado o texto que se a pessoa quisesse mesmo saber sobre o assunto teria parado a discussão e ia ler, olhem bem! O que é isso? Privilégio! Quando você pode discorrer sobre diversos temas à vontade e confortavelmente a partir do alto do seu senso comum ao invés de voltar 2 casas e passar sua vez.

Não tenho nenhum remorso, vergonha ou peso na consciência de mandar um/a playboy ler um texto, principalmente se for da academia (porque eu tenho recorte de raça, classe e gênero, coerência), não faz mais que obrigação para entrar numa discussão, principalmente quando são discussões de acumulo e cunho politico.

Fico pensando onde a falta de honestidade e dignidade dessas pessoas chegam? Ao ponto de reivindicar a periferia? Estou falando de pessoas bem nutridas, estudadas, com a pele ~bonita~ e saudável, classe média que estão há anos na universidade e quando ouvem um conceito acadêmico proferido por mim (estou a 1 ano no feudo Unicamp) me ~acusam~ de “academicista” e me perguntam se isso chega na periferia. 

Eu fico na dúvida se essa pergunta é porque essas pessoas estão há anos na universidade e simplesmente não estudaram como deveriam e por isso não sabem do que eu estou falando e usam essas perguntas como um tipo de defesa desonesta? Ou se elas acham que são periféricas, ou ainda estão usando o conceito de classe contido em Marx como a separação dicotômica do proletariado e da burguesia e não sabem que desde 1970 tem um lugar ao sol no debate de classe marxista para a classe média (Décio Saes e Armando Boito Jr.) ou nova pequena burguesia (Poulantzas) na luta de classes marxista, viu gente?


A maior parte do que sei não veio da academia. PASMEM! Veio da formação em movimentos sociais que sabem que A PERIFERIA NÃO É BURRA e nem subestima a sua capacidade de cognição, de pensar, produzir conceitos, relacionar, argumentar, produzir conhecimento, refletir e sim, é capaz de absorver conceitos e construir um raciocínio lógico tranquilamente a partir da sua vivência (Conceição Evaristo) e do que acontece no seu cotidiano. E que a maioria dos movimentos sociais sabem que precisamos nos formar, dialogar e trocar informações entre o que está sendo construído como pensamento hegemônico por 2 motivos: 

a) o pensamento hegemônico também impacta na vida real das pessoas. Ao contrário do que se argumenta, a teoria não fica contida em si, ela impacta no modo de pensar das pessoas vide o ~favor~ que Gilberto Freyre nos fez;

b) para que haja contra argumentos desse pensamento hegemônico que muitas vezes é racista, classista, homofobico, transfobico, capacitista entre outras opressões que acabam por se naturalizar na prática através do discurso teórico;

Dissimular preocupação com a periferia, para além de desonesto é racista e classista também, quer dizer: “Vai para lá, lá é o seu lugar!” Quer dizer, olha a “argumentação” (~acusação~) que a galera branca, classe média e universitária está desenvolvendo!? No mínimo incompetente e no máximo tendencioso. 
E mais, dá fortes indícios que talvez a pessoa que se utiliza desse artifício desonesto nunca tenha dado uma formação ou trocado ideia com a periferia para além do seu objeto de pesquisa. Pois, a maioria dos conflitos que estudamos e refletimos na academia acontecem em alguma medida na vida dessas pessoas:

  • Pergunta para as meninas o que elas pensam com relação a sua posição no mundo enquanto mulheres e logo você verá que sim, existe feminismo na periferia;
  • Pergunta para a galera LGBTT periférica o que aflige eles e elas você ouvirá sobre lesbofobia, bifobia, transfobia, homofobia e as demais opressões que a heteronormatividade acarreta para essas pessoas;
  • Pergunta para um cara que tá chegando em casa do trampo o que ele acha do seu patrão você encontrará a luta de classes;
  • Pergunta para elas e eles como fazem a sua diversão, você verá que existe uma cultura própria na periferia;
  • Pergunta para galera sobre a polícia você verá que a maioria não vê sentido na polícia;

Isso aqui é saber popular, vivência, prática. 

O academicismo precisa de criticas mesmo, mas em outro sentido, no sentido de considerar saberes empíricos, no sentido de romper com a desigualdade entre a diplomação e a não diplomação, e não nesse sentido sujo de não saber como argumentar em um discussão que se inseriu. Percebo escuramente que a periferia tem me formado cada vez mais. A Unicamp vai me dar um diploma e os conceitos básicos para entender as construções teóricas existentes, mas a convivência com a periferia, ter estado e vivido me traz outras perspectivas e outro tipo de construção acadêmica, eu tenho a necessidade de transmitir isso e de absorver qual a percepção da periferia sobre os assuntos. Como diz Conceição Evaristo: “A nossa escrevivência não pode ser lida como histórias para “ninar os da Casa Grande” e sim para incomoda-los em seus sonos injustos.”

Não estou aqui também romantizando a periferia (nasci e vivi por 16 anos em uma periferia), todas as contradições colocadas pela hegemonia também a incorporam. Assim como os bairros de alto luxo, classe média etc. têm suas posições e ideologias, e dificilmente isso é questionado, a periferia por vezes reproduz esses posicionamentos, discursos e ideologias, e é o objeto de pesquisa, é o “diferente”, como se essas posições e discursos não fossem feitos para alcançar a periferia mesmo e desmobilizá-la enquanto classe.

Reproduzir o discurso de que um diploma não é importante para uma pessoa negras e/ou pobre que almejam entrar em um curso superior. JAMAIS! Vou ajudar no que puder para essa pessoa acessar a universidade, se quiser. Se as pessoas almejam se formar eu acho que temos que apoiar, mesmo sabendo das dificuldades da academia. Fomento isso, sim! Fazer o contrário é falta de responsabilidade com as minhas causas e convicções. 

Existe uma grande diferença entre privilégio e acesso. O privilégio é a vivência natural de uma classe específica (ex. viagens para o exterior, faculdade, carro, mesada etc.) Enquanto que acesso vem a partir da luta por direitos para que uma classe acesse algum direito ou cidadania que os é negado ou a inserção em instituições excludentes (ex. cotas raciais, cotas sociais, bolsas para cotistas se manterem na universidade, cotas em concursos públicos etc.)

Não é justo, muito menos honesto, cobrarmos purismo revolucionário da periferia, as pessoas que tem privilégios precisam se responsabilizar de fato e parar com essa desonestidade fetichista. Estou dizendo que na periferia as pessoas têm a noção e a dimensão mínima dos conflitos que as perpassam enquanto indivíduo ou grupo.  Conversa dois minutos da vida com qualquer pessoa de lá, sem chegar sorrindo estridentemente, mostrando a sua boa educação e como você é “humilde” e “simpático/a” para fingir o seu nojo de pobre que está na sua cara e seja você e trate as pessoas como você trata as pessoas converse com elas enquanto pessoas não quanto objeto de análise, não como ode à miséria, não como gestão da pobreza.

Aqui, penso na questão do diálogo, pessoas brancas, classe média e universitárias. Quando é que a periferia se tornou uma preocupação de diálogo para vocês, para além de seus objetos de pesquisas? É muita prepotência. Percebem que isso é apenas uma defesa de privilégio e mais uma vez disfarçada de preocupação? 

Negras, negros e periferia podem estar onde eles e elas quiserem: na periferia, na academia, na obra, na diretoria etc. Tenho lido muito e a maioria das minhas leituras não vão no sentido do que estudo na academia. Elas vão no sentido da minha militância nos movimentos sociais, de entender a questão de gênero, a questão racial e de classe que é o que perpassa por mim enquanto pessoa, enquanto militância e enquanto vivência e pela maioria das pessoas com as quais eu convivo. Tenho lido muito mesmo, tenho me aventurado até no francês (que ainda levo 5 vezes o tempo de leitura normal) e logo menos vou me aventurar no alemão para saber cada vez mais e poder transmitir isso para as formações nos movimentos sociais. 

Sua preocupação dissimulada não passará! Haverá cada vez mais, negros e negras da periferia acessando a universidade questionando sobre o seu aprendizado, absorvendo aprendizado e retransmitindo para a sua militância ou trazendo sua vivência para a academia e vice versa e tudo isso junto. 

“Não temos tempo para abrir mão de qualquer instrumento de luta. Se os brancos podem abrir mão do conhecimento sistematizado, eles que abram mão. Não deixarei nenhum dos nossos abrir mão do que a humanidade produziu e tomar este conhecimento para transformar a sua e a nossa realidade. Eu afirmo que, em nossas mãos, o conhecimento sistematizado pode tomar uma dimensão revolucionária. É tudo nosso e nada deles!” (PINHO, 2015)

Sigamos!








*Sidélia Silva compõe o Coletivo de Mulheres Negras Lélia González, a Frente de Mulheres Negras de Campinas e o Coletivo de Entretenimento Afrontamento Close. Ela lacra, brilha, fecha a boate e não sofre por amor.



Referências:

Custódio, Túlio. Amarras das letras: das criticas ao academicismo na militância. 2016. Disponível em <http://www.geledes.org.br/amarras-das-letras-das-criticas-ao-academicismo-da-militancia/>


HOOKS, bell. Intelectuais Negras. 1995. Disponível em < https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/viewFile/16465/15035>


PINHO, Carolina. Eu, mulher negra na universidade...academicista? 2015. Disponível em: <http://blogueirasnegras.org/2015/07/29/eu-mulher-negra-na-universidade-academicista/>


SANTOS, Sônia Beatriz. Feminismo Negro Diaspórico. 2007. Disponível em <http://www.revistagenero.uff.br/index.php/revistagenero/article/view/157/100>